O cansaço instalou-se.

Com a acumulação do medo, incerteza e perceção de falta de controlo, mas também das medidas restritivas, regresso à “nova normalidade” e tentativas diárias de manter a resiliência, onde fica a brincadeira? Onde ficam os risos, a corrida na calçada, ou ainda os sonhos de novos brinquedos para levar no bolso e partilhar com o amigo?

A brincadeira está lá, tão perto e tão longe, debaixo de tantas preocupações, privações e batalhas numa fase tão incerta, pois “não há tempo para essas criancices!”. Mas a criancice faz falta à criança, dado que falamos de alimento para a alma (e para a saúde mental, não nos enganemos).

Resgatemos a brincadeira, numa missão para crianças e adolescentes… e para crescidos:

1. A criança de alma e energia irrequietas (pois, afinal, é criança)

Com o acesso ao recreio e ao ar livre tão limitado, é difícil encontrar tempo e espaço na própria casa para o brincar.

Pais e filhos têm de priorizar as diversas tarefas estruturadas e formais, como a necessidade de monitorizar os trabalhos de casa dos mais novos, ou ainda o teletrabalho e o telefone profissional com expediente cada vez mais alargado.

Pais e filhos não se esquecem, igualmente, das muitas outras tarefas domésticas a cumprir e das discussões, pelo meio, relativas ao (in)cumprimento de regras e ao tempo que parece funcionar de forma tão diferente para adultos e crianças.

A brincadeira tem de ficar em último lugar e aprender a aguardar pela sua criança. Mas é resiliente, sussurra-lhe ao ouvido e fá-la lembrar que é parte essencial da sua aprendizagem. Tal requere um conjunto de ferramentas muito específico para ambas as partes – criatividade e adaptação, mas igualmente resiliência e priorização.

Por um lado, a capacidade de utilizar os (poucos) meios ao seu dispor para criar, resultando no brinquedo mais imperfeito e verdadeiro como castelos feitos de papelão, estrelas de Natal feitas de colheres de plástico ou um antigo “quantos-queres” a partir do qual podem criar histórias, atividades estas que colocam à prova a sua motricidade fina e ampla, resolução de problemas e linguagem (e com uma dose extra de carinho).

A parte mais complicada é criar tempo para além do seu conceito físico, aprendendo a dizer “não” e a definir necessidades emocionais em detrimento da necessidade de controlo. Esta mensagem é para os pais, por vezes impossibilitados de ouvir o apelo da brincadeira devido ao facto de vos ser exigido sempre “aqui” e sempre “agora”. Observar e escutar, funções importantes para priorizar o que será mais vital naquele dado momento – acompanhar a criança enquanto visualiza o desenho-animado favorito; estar disposto a criar uma pequena tempestade na cozinha para criar um bolo que vai demorar “demasiado” tempo, causar “demasiada” sujidade e provocar não demasiados risos; ou apenas parar o relógio e ver a criança no seu faz-de-conta quando deveria estar a fazer a sua mochila ou a apanhar as roupas do chão, perdida na sua imaginação e na sua bendita criancice.

2. O adolescente digital

Vários são os relatos de pais preocupados com os seus adolescentes entediados e fechados nos seus quartos entre quatro paredes, influenciadores e influenciados. Apesar de ser importante respeitar a sua privacidade e espaço pessoal, não se esqueçam pais, não são os amigos mais velhos – pede-se afeto, mostrando afeto; pede-se presença, estando presente.

Importa sentar ao lado do adolescente e conhecer a realidade com a qual ele contacta diretamente, sem julgamentos a priori e relativizando eventuais amostras de insatisfação de “mãe, agora não” ou “pai, não gostas disto, não vale a pena”. Importa mostrar que ele é importante, que querem ouvir e ver pelos seus próprios olhos, partilhar opiniões ou simplesmente partilhar silêncios. Tal poderá implicar pegar num comando de consola pela primeira vez, participar num desafio Tik-Tok, agitar as águas do adolescente com partidas inesperadas ou simplesmente rir, só rir.

Mas a moeda tem sempre dois lados: importa falar sobre o vosso dia enquanto pais (mesmo sabendo que nunca será tão interessante como o vídeo partilhado por aquele influencer no seu canal de Youtube), sobre o que vos causou alegria, tristeza, raiva ou calma nesse dia. Deixem a porta aberta para a brincadeira, para o retorno das partidas, …. e ele entrará.

Olhemos para a brincadeira sem preconceitos e na sua grande importância para o desenvolvimento da criança, sendo uma porta de entrada para a aprendizagem e para o auto-conhecimento: ajuda-a no “faz-de-conta”, a observar o meio envolvente, a modelar o seu comportamento, a comunicar de forma verbal e não verbal, a reconhecer intenção em si própria e no outro, a estabelecer relações e laços afetivos e, ainda, a ultrapassar as adversidades (são fantásticos a adaptarem-se, mas não são de ferro…).

Que as crianças continuem a brincar e que tenham sempre sintomas de “criancice”.

Fonte: Dra. Liliana Costa – Psicóloga Clínica – Adulto e Infantil – Equipa COGE